PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO SOFRE PRESSÃO DE GRUPOS RELIGIOSOS E PODE DEIXAR DE PROMOVER IGUALDADE DE GÊNERO
Setores religiosos pressionam deputados em
aprovação do PNE e acusam imposição do que chamam de “ideologia de gênero”.
Movimentos sociais e pesquisadoras explicam que acusações são motivadas por
homofobia e fundamentadas em “equívocos conceitual, pedagógico e político”
“Contra a ideologia de
gênero!”, “Pela salvação da família!”, “Contra a educação ideologizada e a
manipulação do PT!”, escreviam internautas de forma compulsiva e repetida
durante vídeochat realizado com o deputado Angelo Vanhoni (PT-PR),
no último dia 1º de abril. As interações que superlotavam a caixa de diálogo
com o político eram apenas algumas das manifestações que apareceriam não só no
ambiente virtual, mas também em posicionamentos de representantes de setores
religiosos divulgados nas últimas três semanas como forma de pressionar a
alteraçãodo Artigo 2º, inciso III, do Plano Nacional de Educação (PNE).
Em tramitação na
Câmara dos Deputados, o PNE é o documento que deve estabelecer as diretrizes
para a educação nacional durante os próximos dez anos. Após ser avaliado pela
Comissão Especial, o Plano deve ir à plenária e a expectativa é que seja
aprovado até o fim do mês de abril. No entanto, alguns setores religiosos
pressionam contra o que chamam de “ideologia de gênero”. Estes grupos, reunidos
no Congresso principalmente na bancada cristã por deputados dos partidos PSDB,
PMDB e PSC, vão contra o texto que pede a “superação das desigualdades
educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e
de orientação sexual”, e defendem a “superação das desigualdades educacionais,
com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de
discriminação”. (Veja os principais pontos de disputa no PNE)
Para a professora da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FE-USP), Cláudia Vianna, as ações investidas por
estes grupos – que segundo ela não representam todos os setores religiosos –
partem de equívocos conceitual, pedagógico e político. “Não existe ‘ideologia
de gênero’ ao explicitar que se deve trabalhar com as dimensões de todas as
desigualdades. É importante que a escola crie um espaço onde se problematize a
exclusão e o preconceito”, explicou a professora. De acordo com ela, a
homofobia é o que orienta os discursos destes grupos: “a gente sabe que a
crítica ao texto da Câmara é insustentável até mesmo do ponto de vista teórico
e parte de uma suposição equivocada de que a escola pode ensinar a ser gay”.
Já para o bispo
auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro Dom Antonio Augusto Dias Duarte, que
publicou nota condenando o que classifica como “ideologia de
gênero” no PNE, as ideologias devem ter seu espaço de reflexão e de debate
entre pessoas “intelectualmente bem maduras, porque crianças e jovens ainda
estão em formação e ainda não têm maturidade de separar a verdade das ideias”.
E defendeu: “Ao falar de educação, não temos que pensar em partes isoladas ou
minoritárias da pessoa humana. Temos que pensar grande, de maneira integral”.
Para Dom Augusto, o conceito de “ideologia de gênero” se refere a um conjunto
de ideais propagadas por um “movimento feminista de terceira geração, radical,
com ideologia marxista e que se baseia na ideia de oprimidos e opressores”.
Segundo a mestre em educação pela FE-USP e
professora de sua escola de aplicação, Samanta Stockler, não é possível
promover a cidadania de forma neutra, universal e sem considerar as políticas
específicas para setores que são e foram historicamente discriminados, como
mulheres e negros. “O termo ‘ideologia de gênero’ é utilizado há muito tempo
pelo movimento de mulheres justamente para discutir práticas e símbolos ligados
ao machismo e à exclusão das mulheres em espaços sociais. Há a necessidade de
especificar qual é essa cidadania, de quais direitos e de quais desigualdades
nós estamos falando”, disse Samanta. E afirmou: “não é possível falar de
desigualdades apenas da perspectiva de classe, sem citar as questões de raça e
de gênero e, certamente, há setores progressistas das igrejas católica e
evangélica que não pensam assim”.
Já em 2010, a partir
da 1ª Conferência Nacional de Educação (Conae) que contou com a participação
direta de 400 mil delegados de todo o país, o documento final estabelecia de
forma explícita que a educação deveria reconhecer e valorizar a diversidade,
“com vistas à superação das desigualdades sociais, étinico-raciais, de gênero e
de orientação sexual bem como atendimento aos deficientes”. (Veja como está a tramitação do PNE na Câmara)
Por que falar em
gênero?
“Observei o orientador
tentando das mais diversas formas descaracterizar o que havia acontecido como
agressão (…) e vi a minha irmã em casa aceitando essa culpa, se martirizando
pelo que ocorreu. (…) É comum que em outros casos, geralmente distantes, sempre
se busque justificativas para a agressão, geralmente atribuindo a
responsabilidade na mulher: a roupa da vítima, o horário e o local onde tudo o
ocorreu”, observou Nathalya Macchia em seu texto ‘Mas era só brincadeira’ – um
estudo de caso da violência contra a mulher”, ganhador do 9º Prêmio
Construindo a Igualdade de Gênero.
Aluna do segundo ano
do ensino médio, Nathalya estuda em um colégio privado da capital paulista e
ganhou o prêmio ao relatar um caso de machismo e opressão vivenciado por sua
irmã dentro do ambiente escolar, quando foi coagida e molestada por alunos de
sua classe. (Veja texto completo de Nathalya aqui) Para ela, “as
instituições contribuem para a pessoa internalizar ou não uma questão, podendo
discutir e a partir daí se posicionar. Se o aluno aprende em casa que a mulher
é inferior e submissa, a escola tem que mostrar que esta visão está errada. A
escola é muito importante para a formação do indivíduo e é responsável por
trabalhar com estas questões, principalmente, por ter acesso aos atuais dados
de violência contra a mulher”.
Para a professora da USP, Cláudia Vianna,
trabalhar com atividades relacionadas às questões de gênero na escola é
importante para evidenciar as diferenças entre as pessoas, mas sem reforçar as
desigualdades: “a escola não é a única responsável, mas é uma das instituições.
E a lei, por meio do PNE, pode garantir mais um instrumento para quem tem
clareza e pode cercear aqueles que insistem em discriminar”. Cláudia defende,
também, que a escola trabalhe tanto com sua função instrucional, quanto com sua
função socializadora. “Na escola, há o contato com formas de convívio que não
necessariamente a criança vai aprender em casa. Uma criança que vê seu pai
bater sistematicamente em sua mãe, pode aprender na escola que o afeto não é
necessariamente sinônimo de espancamento ou de violência física”, exemplificou.
Brinquedos de meninas,
brinquedos de meninos
“Definimos que os alunos teriam um horário
reservado duas vezes na semana para brincar. Compramos os brinquedos e os
dividimos em duas caixas: uma com bonecas e utensílios de cozinha e a outra com
carrinhos e bonecos. No começo, os alunos faziam questionamentos e houve um
pouco de resistência tanto dos meninos quanto das meninas, mas a gente ia
conversando e as crianças acabaram entrando na brincadeira. Toda vez que
terminava, fazíamos uma roda e conversávamos sobre o que eles tinham achado. E,
com o tempo, percebemos que eles passavam a ter novas atitudes. As crianças
percebiam qual era o discurso socialmente aceito, mas tinham a oportunidade de
vivenciar situações diferentes e ter questionamentos que as ajudavam a ter uma
outra visão.
Este tipo de trabalho é importante para
contribuir com a superação das desigualdades quanto às questões de gênero em
situações de divisão do trabalho doméstico e do cuidado com os filhos, por
exemplo. Estas situações vivenciadas pelas crianças podem contribuir na medida
em que problematizam e desconstroem estereótipos, mostram que é possível viver
com respeito e construir uma sociedade mais justa tanto para as mulheres quanto
para os homens, na medida em que conseguem viver melhor a questão da
afetividade e do cuidar. E isso melhora a vida de ambos”.
Relato da então
coordenadora pedagógica, Edna Oliveira Telles, sobre atividade que desenvolveu
com crianças do 1º ao 5º do ensino fundamental na Escola Municipal EMEF Ernani
Silva Bruno, na região do Jaraguá, na cidade de São Paulo. (Leia também artigo escrito pela professora Edna)
Acesso, permanência e
qualidade
De acordo com a professora Samanta Stockler,
é importante pensar a relação entre educação e gênero tanto com o intuito de
promover uma sociedade menos machista, com a garantia de direito para todas as
pessoas, quanto para se pensar no acesso, na permanência e na qualidade do
ensino independente do gênero ou da orientação sexual do estudante. “Temos que
pensar, também, nas questões de gênero na Educação de Jovens e Adultos (EJA),
por exemplo, porque um número grande de mulheres com mais de 40 e 50 anos não estão
frequentando as salas de aula e as que estão presentes têm sérias dificuldades
de permanência”, alertou.
Formação dos
profissionais da educação
“Além do trabalho com os brinquedos que
socialmente eram tidos como do sexo masculino ou do sexo feminino, como
diretora tive oportunidade de ampliar isso para o restante da escola, sempre
utilizando a formação de professores e de toda a equipe e discutindo estas
questões com as monitoras das creches dentro do horário de trabalho. E, neste
sentido, tivemos oportunidade de fazer atividades para além dos investimentos
específicos para formação continuada dos profissionais, convidando todos à
reflexão.
Nestas formações, nós começamos tratando de
práticas e estereótipos, passando por questões de gênero e identidade sexual.
Mas infelizmente estas iniciativas ainda não são institucionalizadas, com o
apoio da Secretaria, e acabam dependendo da atitude de uma ou outra gestora.
Eu tenho sido convidada por outras escolas
para dar formação de equipes e, no ano passado, tivemos um simpósio em que
discutimos o direito da criança brincar e as questões de gênero. O problema é
que se não for algo institucionalizado, os resultados ficam limitados pela
dificuldade em se trabalhar a longo prazo, dependendo de pessoas e escolas que tenham
condições de discutir estas temáticas.
A formação de professores e da equipe em
geral é essencial para se fazer discussões e refletir sobre a igualdade e sobre
a exclusão que os estereótipos de gênero podem ocasionar. Desta forma, há uma
mudança no dia a dia da prática docente e da escola como um todo, contribuindo
com o encaminhamento para vários conflitos que já aparecem no ambiente da
escola”
Relato da diretora da
escola de educação infantil, Liane Rizzato, sobre as atividades que desenvolveu
com os demais profissionais da escola EMEB Professora Ilda Maria Alves
Paschoalatto, localizada na cidade de Jundiaí, em São Paulo. (Leia artigo publicado pela diretora Liane)
Além disso, Samanta destacou que a discussão
de gênero aborda não apenas mulheres, mas também “a relação entre homens e
mulheres, a construção ideológica e as políticas públicas”. “Tanto no ensino
fundamental, quando no médio, ainda temos problemas sérios de permanência dos
meninos negros e pobres no sistema de ensino”. Quanto às mulheres que não
estudaram na idade certa, a professora explicou que a dificuldade que enfrentam
se constitui como consequência das desigualdades de gênero dos anos 1970 e
1980. “É uma realidade que tem a ver com o processo histórico geral de exclusão
das mulheres: com a necessidade precoce no mercado de trabalho, com o fato de
as famílias não priorizarem o estudo das meninas, com a necessidade de cuidarem
da família e com a ausência de companheiros que compartilhassem esta
responsabilidade”, enumerou.
Autor: De Olho nos Planos
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